lundi 18 février 2008

O delírio platônico de Paris

12/02 - Paris - Não é exatamente um texto sobre a viagem mas sobre uma impressão sobre a cidade de Paris. Admito que tem uma certa dosagem acadêmica, entretanto, já tinha escrito resolvi postar. Os próximos vou tentar evitar.


Em um dos textos mais famosos da história da filosofia, Platão funda sua "cidade ideal" em um princípio muito simples, a saber: cada um estará encarregado de apenas uma especialidade na cidade. Em outras palavras, ninguém vai meter o bedelho no trabalho de um artesão se não conhece do assunto, ou em qualquer outra técnica. Digamos assim, na cidade platônica, cada um faz o que sabe, que no fim tudo da certo; "trabalha e confia". Esta premissa é muito simples e facilmente aceitável, vide principalmente se pensarmos em nossa sociedade atual fundada na divisão do trabalho. Quem iria duvidar do atestado de um técnico não entendendo do assunto nos dias de hoje.

No entanto, este ser familiar com certo metier que lhe concerne, ser detentor de um conhecimento e ao mesmo tempo executor de tal tarefa, o grego chamava de TEKHNE; às vezes traduzido como técnica, outras como arte. De forma geral, podemos dizer que a cidade fundada pelo discurso de Platão é enraizada pela arte. Assim, política e arte, segundo Platão, são muito mais do que duas instâncias distantes nos currículos de filosofia, mas estão intimamente relacionadas. Depois dessa breve introdução podemos fazer a reflexão sobre a viagem.

Paris parece ser a "prova viva" de que o delírio Platônico de uma cidade fundada na arte é possível, ou ainda, muito mais do que um devaneio da linguagem, é real. O que isso quer dizer? Que Paris atende as necessidades impostas pelo discurso platônico para uma cidade feliz...? Falar da realidade da cidade platônica em Paris, ao menos em partes, é salientar, realçar, enfatizar o que ela tem de bom e de ruim. Partamos então.

Não é necessário muito tempo em Paris pra notar que aqui "só tem artista". Isto é, assim como a de Platão, a arte é também fundamento da cidade de Paris. Ora, nada de surpreendente na medida em que aqui se encontram alguns dos maiores museus do mundo: Louvre, d'orseil, Rodin, Pompidou... sem falar nas monumentais igrejas e prédios históricos. Em outras palavras, Paris é um prato cheio pra "passeios cults", sem a menor sombra de dúvida. Todavia, não era disso que eu falava. Como salientei no texto anterior, a possibilidade de se surpreender com uma manifestação do “sobrenatural de almeida”, pra usar uma expressão de Nelson Rodrigues, é intrínseca a cidade de Paris. Há arte por todos os lados, mesmo quem pouco vê está ciente disso aqui.

Conversando com Stefan um dia sobre meus amigos artistas, e como eles se sentiriam bem com este ambiente propicio a arte, ele me alertou pra algo: todo mundo aqui é artista! Uma amiga que trabalha no albergue é bailarina, outro é diretor... fora os que ficam fazendo performance pelas ruas, nos metros, na frente das igrejas... Uns com apresentações de ilusionismo, dança, música clássica, hip hop etc.

Contudo, junto com esses muitos artistas, temos que contar ainda com um outro tipo: aquele que molda sua arte às exigências do turista ou, ainda muito pior, uns indivíduos com 20 poucos anos sentados no chão, plenamente saudáveis a primeira vista, com uma plaquinha escrita "por favor, me ajude, estou com fome". Têm pedintes aqui que se não forem classificados como artistas, não sei como fazê-lo. Nas palavras da amiga de Mariana: "isso aqui é um circo!"

Parece então que estamos traçando duas linhas de pensamento contraditórias entre si. Uma diz que Paris está fundada na arte, e outra que diz que muito dessa arte não tem nada de artística, mas é eminentemente comercial ou aproveitadora. Surpreendemente contudo, diremos que nenhuma das asserções são falsas. Nem a que aponta pra riqueza de artistas envolvendo a cidade com um clima aurático, nem a que aponta pra palhaçada que vem junto.

Paris é fundada na arte, e isto é evidente pra qualquer observador, seja bom ou ruim. E talvez por isso mesmo, na comercial necessidade de aparecer sem ser, mora junto a palhaçada; a arte pra Inglês, Português e, principalmente, Japonês ver. Junto com o artista vem também o arteiro.

A arte que dá a identidade de Paris é a mesma que a degrada, a que traz o estrangeiro cheio de opiniões formadas pelos manuais de turismo, que precisa que algo esteja piscando pra que note, ou para quem tudo é fantasia. Isso é, o idiota. Idiota, na raiz da palavra grega, diz daquele que não é sabido de uma técnica/arte específica. Podemos dizer então, que ser idiota em certos meties é algo completamente natural. O grande problema político é não saber disso, não assumir sua própria idiotice frente ao que lhe é estranho e se colocar na abertura da possibilidade de que algo extraordinário aconteça. O que acontece frequentemente é que no lugar dessa idiotice socrática saudável, toma conta o niilismo da visão turística. O paradoxal é que sem eles, os idiotas metidos a sabidos, e seus dólares e euros obviamente, Paris dificilmente se sustentaria, principalmente financeiramente; mas desconfio até que muito mais do que isso, sem o estranho Paris não é Paris. A identidade de Paris flutua como uma criança se equilibrando num parapeito entre o belo e o bizarro.

Fica então a pergunta suspensa: de que artistas e idiotas seria feita a cidade platônica, será que dos mesmos que em Paris? Se no discurso cabe um não, no sentido de uma cidade “feita de melhores”, fundada na excelência... na efetivação desse mesmo princípio, ele mostra sua potencialidade de face nefasta e medíocre. Paris é semelhante a proposta da “República” na medida em que enfatiza o que ela tem de potencialmente problemática e ao mesmo tempo virtuosa, o que ela é, não é; mas principalmente, o que ela não pode ser, e o que ela tem de ser.

Explorando ainda mais essa alucinação, talvez essa mesma situação paradoxal entre política e arte esteja na raiz da anti-patia francesa frente ao estrangeiro, expressa muitas vezes no seu orgulho por sua língua, e em muitas vezes, falta de compreensão para com aquele que ali não pertence. Por que acolher o idiota? Em outras palavras, a linguagem é o lugar mais evidente para demonstração de que a Pólis Parisiensese se funda em um princípio estranho, a saber: a necessidade de estabelecer os limites do que é seu, e por isso mesmo de mais nenhum outro; e, ao mesmo tempo, fazer com que o outro esteja presente, pois caso contrário não sobreviveria. É entre a má vontade e a bajulação que a gente vai levando a vida pra financiar o extraordinário.

Esta história está longe de ser resolvida, o certo é que na mesma Paris Platônica contemporânea onde mora o artista, mora também o palhaço. No mesmo lugar onde habita o profundo sentimento de estar perdido e aberto ao que pode lhe surpreender, habita também o idiota alheio a tudo isso, sendo possivelmente inevitável viver sem ele. Nesta babel de línguas, cultos, ritos... vive uma cidade em busca da unidade na diversidade, sendo a busca ela mesma sua própria beleza. Como seria isso possível se não fosse platônico?!

dimanche 10 février 2008

Paris - cidade da perdição

31/12 - Paris - Se tivesse de ser descrita, certamente este nome cairia muito bem como substituto de “cidade luz”. Não que os traços marcados do iluminismo estejam se degradando ou se escondendo pela cidade, muito pelo contrario, eles saltam aos olhos por todas as partes. A luz de paris é “something else”. Todo dia é dia de aurora ou dia de presenciar as belezas construídas pela imponência da razão. Contudo, estar em Paris é estar perdido. Mesmo os habitantes locais vivem costumeiramente com um mapa do metrô na mão, ou olhando as direções das placas e os mapas pregados pelos pontos da cidade. Perguntar por sentidos, referências e localizações é muito mais do que “coisa de turista” A minha desconfiança é de que estar perdido em Paris vai além de uma situação cartográfica, é uma “realidade de espírito”. Obviamente, as desvantagens deste tipo de vida são bastante evidentes. A sensação de andar ao relento é angustiante e, na maioria das vezes, também irritante. Entretanto, se estar perdido em Paris perpassa realmente a essência da cidade, tal estado tem também seu encanto.

No meu primeiro dia em Paris, sem lugar pra ir, resolvi parar em um bairro que havia ouvido falar pelos meus amigos. Era algo em torno de 8:00 da manha e estava muito frio. Pro meu deleite, logo descobri que casaco de couro não esquenta no frio. Para aumentar o drama do cenário, eu não havia dormido nada no dia anterior, já que passei a noite no aeroporto Charles de Gaule. Por sinal, uma experiência muito angustiante, já que além do frio, eu estava preocupado demais com as pessoas que vagavam por lá pra conseguir dormir. Assim, depois de uma noite praticamente em claro, encontrava-me no meio da rua com duas malas andando pelo centro de Paris.

Depois de certo tempo, deparei-me com uma das mais belas estruturas que já vi na vida, uma catedral gótica. A iluminação do clarear do dia (aqui amanhece bem tarde), a arquitetura e a minha situação fizeram da minha primeira visualização uma experiência aurática. Segundo as palavras de Benjamin, a aura é a experiência de um “aqui e agora”, radical e insubstituível frente a uma obra única. Apesar da minha postura, ao mesmo tempo, emocionada e um pouco desesperada por não saber para onde ir, notei que algumas pessoas começaram a abrir a porta da catedral e entrar. Perguntei em um francês bem enrolado se poderia entrar com a mala, e a pessoa disse que não havia problema.

Lá dentro, após permanecer alguns minutos admirando algumas obras que ficavam ao lado dos acentos principais, notei que as pessoas estavam se endereçando a parte central da catedral, onde haviam alguns bancos suspensos. Depois de alguns instantes, com as pessoas já dispostas em seus acentos, inclusive alguns de joelhos, um padre começou a rezar uma missa. Senti uma emoção muito grande, como se eu realmente fizesse parte do culto, apesar de não entender uma palavra do que ele falava. Só haviam poucas pessoas no local, mas a devoção de alguns senhores e senhoras idosos, praticamente se arrastando até ali, foi tocante. A experiência certamente vai muito além da possibilidade de descrição. Podemos pensar Kantianamente e dizer que, nessas experiências estéticas (sentido) o que vale é justamente o fato de se constituírem como uma experiência e não como um discurso. Com isso, ganho uma certa desculpa arranjada para minha falta de talento na narração. O certo é que saí de lá revigorado e pronto pra continuar perdido em Paris. A catedral em questão era a Notre Dame.

Andava pelas ruas e, vez por outra, era surpreendido por uma bela igreja, um singelo parque, um pequeno charmoso café ou ainda um prédio de magnífica arquitetura. Andar “despretensiosamente” por Paris, às vezes com aspas, outras vezes sem; querendo encontrar algo, outras vezes não, é estar na absoluta possibilidade de se surpreender. Heráclito diz algo como: quem não espera o inesperado, pra ele não tem vias de acesso... pois, diria eu, que Paris acena a todo momento, com bandeiras e fogos, para esse colocar-se no aberto de uma experiência radical com o inesperado, à abertura do ser. A força desse aceno a possibilidade do súbito de uma experiência radical é quase um tapa na cara a todo momento, parece fazer parte estrutural da cidade; muito mais do que estar reservada a um museu específico ou uma bela paisagem.

Já vi apresentações na rua de música e performances que certamente mereceriam um espetáculo próprio, no entanto, perderiam a habitação deste inesperado; não beberiam dessa fonte de aura invisível que funda a essência de Paris, não estariam perdidos resguardando seu acontecimento próprio, se fossem deslocados pra outro espaço. Paris é a cidade da perdição por que, como diz Noel, “quem acha, vive se perdendo”.